
A pol�tica anunciada possui duas grandes contradi��es: a primeira na identifica��o do problema, e a segunda na escolha da solu��o. Estes equ�vocos foram apontados com veem�ncia por diversas entidades do setor da sa�de, como Conselho Federal de Medicina - CFM e Associa��o M�dica Brasileira – AMB. Contudo, todos os apelos destas e de outras entidades foram completamente ignorados pelo governo.
Em primeiro lugar, n�o precisamos de mais cursos de medicina no Brasil. Somos o segundo pa�s do mundo em n�mero de cursos, atr�s somente da �ndia, que possui uma popula��o 6 vezes maior. Aumentar a quantidade de cursos de medicina n�o resolve o problema proposto, e ainda agrava v�rios outros. Temos, atualmente, 389 cursos em atividade, 167 deles (ou 42,9%) abertos nos �ltimos 10 anos, atrav�s de pol�ticas id�nticas. S� este n�mero j� supera o total de escolas m�dicas da China, que possui 164 cursos e uma popula��o 8 vezes maior.
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Em segundo lugar, n�o precisamos de mais m�dicos. Possu�mos mais de 564 mil profissionais, com uma m�dia de 2,7 m�dicos por mil habitantes, superando pa�ses como Jap�o (2,5) EUA (2,6). Nossos 389 cursos disponibilizam 42 mil vagas por ano, gerando um crescimento da popula��o m�dica de 120% nos �ltimos 10 anos. At� 2035 teremos mais de 1 milh�o de profissionais, e seremos o pa�s com mais m�dicos em todo o mundo.
A verdade � que j� temos cursos em excesso, que geram um n�mero suficiente de profissionais. Nosso problema � a inequidade na distribui��o dos m�dicos no territ�rio nacional, o que passa a falsa impress�o de escassez de profissionais. Al�m disso, sofremos com a baixa de qualidade de ensino que gera profissionais tecnicamente deficientes, quadro que se agravou nos �ltimos anos justamente pela implementa��o desta mesma pol�tica em governos passados. Dezenas de cursos de medicina foram criados em munic�pios carentes, contudo, segundo o CFM mais de 80% destes munic�pios possuem d�ficit na estrutura m�nima necess�ria para abrigar os cursos, comprometendo a qualidade do ensino.
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Como se n�o bastasse, segundo a AMB menos de 20% dos formandos permanece na localidade dos estudos, havendo uma intensa migra��o para as principais capitais do pa�s, onde � registrado excesso de m�dicos e alta concorr�ncia. Esta migra��o ocorre justamente porque as melhores oportunidades profissionais est�o nas cidades mais desenvolvidas, e n�o nas mais carentes, que sequer oferecem uma boa qualidade de vida para os m�dicos e suas fam�lias. Por este motivo, mais de 50% dos m�dicos do pa�s atuam somente em 3 das 27 unidades federativas: MG, RJ e SP.
Esta inequidade gera um brutal paradoxo: 62% dos m�dicos atuam nas 49 cidades que possuem mais de 500 mil habitantes, embora elas concentrem somente 32% da popula��o. Por outro lado, os 4.890 munic�pios com at� 50 mil habitantes abrigam pouco mais de 8% dos m�dicos, embora concentrem 65,8 milh�es de pessoas. Al�m, disso, o setor privado � cada vez mais procurado em fun��o do sucateamento da sa�de p�blica. Segundo a AMB, somente 12,1% dos jovens m�dicos entrevistados ao concluir a resid�ncia m�dica se interessam em atuar na rede p�blica.
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Estes n�meros comprovam o �bvio: a pol�tica rec�m anunciada repetir� o fracasso da anterior. Sob o fr�gil discurso de levar m�dicos a regi�es carentes, criam-se mais e mais cursos sem qualquer compromisso com a qualidade do ensino. A pol�tica at� seria defens�vel (sob o infundado argumento de que “� melhor um m�dico ruim, do que nenhum m�dico”) caso os profissionais, ainda que mal formados, criassem ra�zes nos munic�pios carentes. Contudo, nem isso ocorre!
O mesmo se aplica a outras pol�ticas fracassadas absurdamente reeditadas, como o programa Mais M�dicos. Segundo o CFM, a maioria dos 8.233 cubanos que vieram para o Brasil na primeira edi��o, se estabeleceu em munic�pios da faixa litor�nea, pr�ximos aos grandes centros. O estado que mais recebeu cubanos foi SP, o mais desenvolvido do pa�s (e que j� abrigava quase 30% dos m�dicos brasileiros). Por outro lado, a piora da qualidade parece ser uma obsess�o do governo, pois um dos pontos mais criticados na primeira vers�o do programa foi a dispensa da revalida��o do diploma, e adivinhem: a medida foi reeditada em 2023.
Por que n�o criar pol�ticas p�blicas para solucionar os problemas estruturais, sobretudo no sistema de sa�de dos munic�pios carentes? Com condi��es de trabalho minimamente dignas, certamente haveria m�dicos interessados. Medidas neste sentido corrigiriam a inequidade na distribui��o de m�dicos no Brasil, assim como na alta concorr�ncia das principais capitais do pa�s. Contudo, o foco do governo federal � aumentar indiscriminadamente o n�mero de cursos, sem qualquer preocupa��o com a qualidade, perpetuando o atual quadro de estelionato educacional praticado por muitos cursos de medicina, sobretudo os particulares, que representam 80% do total.
Talvez a explica��o para estas medidas seja o fato de os cursos de medicina serem um mercado bilion�rio, com mensalidades que chegam a R$ 20 mil. Um c�lculo bem simples mostra as vultuosas cifras do neg�cio: cada turma de 60 alunos, com mensalidades m�dias de R$ 10 mil, gera um faturamento anual de R$ 7,2 milh�es. Considerando os 6 anos do curso, o faturamento total com cada turma � de R$ 43,2 milh�es. S� nos pr�ximos 5 anos ser�o iniciadas 10 turmas, em cada um dos 95 novos cursos, totalizando 950 novas turmas, e gerando um faturamento acima de R$ 4,1 bilh�es.
A distribui��o dos cursos (e de todo este faturamento) tamb�m n�o deixa de ser interessante. O estado a receber mais vagas � a BA, do ministro da Casa Civil Rui Costa, com 900 vagas. O segundo, curiosamente, � estado que j� possui mais m�dicos no pa�s: SP, do ministro da Fazenda Fernando Haddad, com 780 vagas. O terceiro � o PA, governado por Helder Barbalho, com 660 vagas. O quarto � o CE, domic�lio pol�tico do ministro da Educa��o Camilo Santana (o pr�prio que anunciou a medida) com 600 vagas. E o quinto � o MA da fam�lia Sarney, com 540 vagas.
Segundo a ministra N�sia Trindade, respons�vel pelo Minist�rio da Sa�de (que na semana passada promoveu evento com verba p�blica, com direito a dan�a er�tica ao som da m�sica “batcu”, da drag queen Aretuza Lovi), este projeto representa a retomada do protagonismo do governo federal na expans�o dos cursos de Medicina.
Pelo menos nisso concordamos: � uma obsess�o do governo federal o protagonismo na reedi��o de pol�ticas fracassadas, que n�o trazem solu��es mas geram bilh�es, e criam excelentes n�meros para impressionar leigos em campanhas eleitorais.
“Direito e Sa�de”
Renato Assis � advogado e professor, especialista em Direito M�dico h� 17 anos, e conselheiro jur�dico e cient�fico da ANADEM. � fundador do escrit�rio que leva seu nome, sediado em Belo Horizonte/MG e atuante em todo o pa�s.