Espera-se resposta severa do ocidente democr�tico ao d�spota bielorrusso, que pode inspirar outros governantes mundo afora caso n�o haja rea��o a altura
Manifestantes protestam contra atrocidades cometidas pelo presidente (foto: Sergei SUPINSKY / AFP)
No contexto do desmantelamento da Uni�o das Rep�blicas Socialistas Sovi�ticas (URSS), a Bielorr�ssia conquista a independ�ncia em 1991. O pa�s, desde meados da d�cada de 90, tem um governo pouco contrastante.
A dif�cil transi��o econ�mica para o jovem pa�s, nos prim�rdios de redemocratiza��o, foi caracterizada por uma tentativa de aproxima��o com a Europa Ocidental, com o intuito de melhorar a condi��o econ�mica da antiga rep�blica socialista, com Stanislav Chouchkievich, o primeiro chefe de Estado do pa�s, na era p�s-sovi�tica.
Todavia, a forte depend�ncia da R�ssia, principalmente de mat�rias-primas, exerce um papel antag�nico nesta tentativa.
Chouchkievich foi substitu�do 3 anos depois. Oficialmente, por causa de sua incapacidade de controlar a corrup��o existente em seu governo; na verdade, por seu desejo de reaproxima��o com os pa�ses ocidentais. Nesse contexto, foi escolhido para a presid�ncia, em 1994, Aleksander Lukashenko.
O novo governo adotou, inicialmente, reformas democr�ticas. Mas tornou-se um governo autorit�rio (afastando-se, dessa forma, da Uni�o Europeia) e a figura pol�tica mais importante do pa�s no in�cio do S�culo XXI.
Ap�s a vit�ria, Lukashenko trabalhou para ampliar a reaproxima��o com a R�ssia, o que levou � assinatura de um tratado de amizade e coopera��o entre os dois pa�ses.
O novo l�der percebia que fora da R�ssia havia pouca salva��o para o pa�s, dependente de 90% da energia consumida do vizinho al�m do endividamento externo, cujo principal credor era a R�ssia.
Para a aprova��o das novas medidas, em 14 de maio de 1995, um referendo multifacetado foi organizado.
O presidente bielorrusso Alexander Lukashenko (foto: Dmitry Astakhov / POOL / AFP)
A popula��o votou pela ado��o do idioma russo como l�ngua oficial, por uma nova bandeira (a vermelha e branca foi substitu�da pela bandeira vermelho-verde, que era a da Bielorr�ssia dentro da Uni�o Sovi�tica) e s�mbolos nacionais, bem como uma maior integra��o econ�mica com o vizinho do leste.
O apoio popular foi legitimado, mesmo com um baixo comparecimento da popula��o �s urnas. Uma nova constitui��o foi aprovada em 1996 (n�o reconhecida pela EU).
Lukashenko, ex-comandante de um solvkoze (fazenda coletiva estatal da antiga URSS), ainda se mant�m como Chefe de Estado. Ele consegue isso, em particular, gra�as �s elei��es, sistematicamente marcadas por irregularidades, como atestam v�rias organiza��es ocidentais.
O novo governo n�o reavivou somente a bandeira e s�mbolos nacionais como heran�as sovi�ticas. O passado permeia seu dom�nio autocr�tico e suas pol�ticas socioecon�micas.
Para permanecer no poder, o l�der fez um acordo impl�cito com o seu povo. Ofereceu seguran�a econ�mica e existencial em troca de uma liberdade desprezada e de direitos humanos violados.
A Bielorr�ssia de Lukashenko se afasta de uma economia liberal imediata, como era norma na Europa p�s-URSS. O Estado de bem-estar social amparado por pol�ticas de poucas privatiza��es, grande servi�o p�blico, subs�dios substanciais � agricultura e a ind�stria s�o as estrat�gias adotadas pelo novo l�der.
Com essas medidas, ap�s 10 anos no poder, o pa�s era um dos mais din�micos da ex-Uni�o Sovi�tica. Seu sucesso se baseava tamb�m em um relacionamento pr�ximo com a R�ssia, de longe seu principal parceiro comercial.
Essa proximidade n�o � por acaso. Os interesses s�o m�tuos. A R�ssia tem uma preocupa��o permanente: proteger-se da Uni�o Europeia (UE) e da OTAN em sua fachada ocidental. Sem um aliado de peso, o flanco oeste do pa�s fica, quase que na totalidade, vulner�vel aos interesses geopol�ticos externos.
Para a Bielorr�ssia, era a forma de garantir a sua seguran�a existencial: um pa�s sem litoral, espremido entre a Europa e a R�ssia, a manuten��o de uma pol�tica de boa vizinhan�a era fundamental.
Esta realidade geogr�fica exigia um constante jogo de cintura do governo para manter a aproxima��o certa com os vizinhos, sem gerar frustra��o em nenhum.
Ao logo dos seus seis mandatos, a postura de Alexander Lukashenko consistia em um ato cont�nuo de equil�brio. Garantir a identidade nacional bielorrussa, sem apontar o dedo para a R�ssia, enquanto depende dela economicamente, mas sem se tornar seu vassalo.
O acordo n�o oficial com o seu povo serviu tamb�m de suporte para espalhar o espectro do caos, para desencorajar aspira��es revolucion�rias. Essas garantias econ�micas e de seguran�a tinham, evidentemente, um pre�o.
A Bielorr�ssia de Lukashenko � um estado autorit�rio. A promo��o do patriotismo e de uma ideologia de estado � formatada desde cedo com os jovens bielorrussos, com o monitoramento pr�ximo em todas as esferas da sociedade e, claro, pris�o dos l�deres opositores.
Talvez isso explique o grande consumo de �lcool da popula��o que, em 2017, tinha o recorde mundial, com 17,5 litros per capita anuais. H� tamb�m as consequ�ncias da explos�o nuclear de Chernobyl, em 1986.
Trinta e cinco anos depois da explos�o do reator n�mero 4 da usina ucraniana, escavadeiras ainda enterram casas abandonadas. O pa�s, vizinho � Ucr�nia, foi o que sofreu a precipita��o radioativa mais grave: 23% de seu territ�rio foi contaminado por c�sio 137 e estr�ncio 90.
O nordeste do pa�s, sob efeito dos ventos que deslocaram nuvens radioativas e, principalmente, ao sul, em uma larga faixa acima da fronteira, foram as regi�es mais afetadas. A zona de exclus�o � de mais de 1700 km2, 16 vezes a �rea de Paris, a capital francesa.
Essa instabilidade cria muito desemprego, depress�o severa e suic�dios, o que leva mais facilmente a um maior consumo de �lcool.
Como resultado, o �ndice de viol�ncia conjugal tamb�m � elevado no pa�s. Cria-se um c�rculo vicioso, uma vez que o alcoolismo favorece um clima prop�cio � brutalidade, o que acaba levando ao maior consumo de �lcool entre as v�timas e os agressores.
Entretanto, nada disso afetou a perman�ncia de Lukashenko no poder. Ap�s cada elei��o, as manifesta��es da oposi��o democr�tica foram, sistematicamente, reprimidas, de modo geral, com muita viol�ncia.
Mas, depois de mais de 25 anos de poder incontest�vel, 2020 marcou um ponto de virada. Em 9 de agosto de 2020, ap�s uma elei��o contestada, dezenas de milhares de bielorrussos sa�ram �s ruas das principais cidades para manifestar.
Muitos deles carregavam a bandeira branca-vermelha-branca, bem alto. Essa bandeira representava a antiga Rep�blica Popular da Bielorr�ssia, o estado independente, que durou 10 meses, entre 1918 a 1919. A vida curta da bandeira deve-se � invas�o sovi�tica (1919).
Ap�s a proclama��o da independ�ncia da Rep�blica da Bielorr�ssia, a bandeira branca-vermelha-branca reapareceu, como uma express�o de rep�dio ao passado sovi�tico. O novo s�mbolo acompanhava a pol�tica de democratiza��o e reaproxima��o com o ocidente.
Novamente, a bandeira de dois tons foi hasteada apenas por um curto per�odo de tempo, j� que, ap�s as elei��es de 1994, Lukashenko declarou guerra ao passado nacionalista e ao retorno � heran�a sovi�tica. Assim, a rec�m-nascida bandeira foi substitu�da por aquela que acompanhou os �ltimos 40 anos sovi�ticos, livrando-se apenas da foice e do martelo comunista. � assim que o presidente a quer h� mais de 25 anos.
A bandeira branca e vermelha tornou-se s�mbolo da resist�ncia recente, Lukashenko passou duas d�cadas desacreditando-a por lei e propaganda. � proibido exibi-la fora dos eventos autorizados, sob pena de viola��o legal.
Protesto na Pol�nia pela liberdade na Bielorr�ssia (foto: Wojtek RADWANSKI / AFP)
Os apoiadores de Lukashenko tamb�m est�o trabalhando para desonr�-la. Eles a associam a um s�mbolo fascista, que foi usado pelos nazistas, como um substituto � bandeira sovi�tica, quando o pa�s ficou sobre o dom�nio do Terceiro Reich.
� ineg�vel que o manejo altamente criticado da pandemia e crise do coronav�rus teve um peso expressivo nos movimentos que eclodiram no ano anterior. Alexander Lukashenko recusou qualquer medida de conten��o e n�o levou a s�rio a pandemia.
Lukashenko se recusou a reconhecer a realidade da dissemina��o do v�rus e proclamou que bastava trabalhar bem e ter um estilo de vida saud�vel para evitar a contamina��o (parece o mantra de um governo bem familiar aos brasileiros). O estado paternalista de Lukashenko n�o protegeu seu povo.
Essa falha grotesca na condu��o da pandemia minou o contrato velado que existia com o povo.
Nas elei��es de 2020, ap�s enviar para a pris�o todos os candidatos mais temidos, Lukashenko decidiu deixar Svetlana Tikhanovskaya concorrer �s elei��es presidenciais. Seu marido, Sergei Tikhanovsky, foi um dos presidenci�veis presos.
Lukashenko a considerou inofensiva (a ditadura � machista). Com essa decis�o, ele ofereceu � oposi��o um l�der inesperado. Svetlana, cuja lideran�a era considerada improv�vel, estava determinada, a "Joana d'Arc bielorrussa" se torna o s�mbolo de um pa�s que clamava por mudan�as.
A jovem mulher, de 37 anos, teve o cuidado de n�o bancar a revolucion�ria. Coerentemente, exigia di�logo. Um desafio para Alexander Lukashenko, mis�gino e apoiado nos impulsos conservadores de uma Bielorr�ssia ainda muito rural, denegriu Svetlana Tikhanovskaya e sua equipe feminina como "meninas pobres".
Na contram�o, a musa da oposi��o convidou o presidente a discutir o processo de “ceder o poder". Um apelo inteligente para uma transi��o pac�fica da candidata que n�o ambicionava se tornar presidente. Seu �nico programa era libertar os presos pol�ticos, mudar a Constitui��o e organizar uma nova elei��o presidencial.
A popula��o foi em peso �s urnas.
Os resultados oficiais, no entanto, contrariando as pesquisas de opini�o, garantiram uma vit�ria esmagadora ao governo, com mais de 80% dos votos. Esse resultado foi contestado e uma manifesta��o sem precedentes se seguiu nos dias posteriores � vota��o.
A onda de protestos no pa�s foi causada pela m� gest�o da Covid-19, a economia oscilante e os resultados, novamente, marcados por irregularidades das elei��es.
A UE, a partir outubro de 2020, imp�s, gradualmente, uma s�rie de san��es contra o governo e outras lideran�as da Bielorr�ssia. As san��es foram uma resposta � viol�ncia inaceit�vel das autoridades do pa�s contra os manifestantes, atos de intimida��o, pris�es e deten��es arbitr�rias.
Mas os efeitos dessas restri��es n�o surtiram o resultado esperado. A repress�o brutal acabou com os protestos e serviu para aproximar da R�ssia, ap�s um per�odo de estremecimento das rela��es entre os dois pa�ses.
Espera-se uma resposta severa do ocidente democr�tico � atitude do d�spota bielorrusso. Se o Ocidente n�o agir com a firmeza necess�ria, outros ditadores ou aspirantes podem se inspirar e rupturas � democracia se replicarem no mundo.
N�o se manifestar, com rigor, contra os anseios autocr�ticos, alimenta o fortalecimento de pr�ticas antidemocr�ticas mundo afora.
A hist�ria pode nos cobrar caro pela omiss�o e sil�ncio t�cito.
Como bem disse Martin Luther King, na sua luta pelos direitos civis, nos EUA, “a injusti�a num lugar qualquer � uma amea�a � justi�a em todo o lugar”.