Ilustração de moléculas de DNA diante de olho de mulher

A gen�tica vem sendo aplicada ao campo da psicologia e da sociologia, com resultados %u2018realmente controversos%u2019

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Voc� tem tend�ncia gen�tica � ansiedade? Ou � introvers�o? Hoje em dia, � poss�vel responder a estas perguntas, gra�as a um novo e pol�mico campo cient�fico: a gen�mica social e do comportamento.

A gen�mica � o estudo do genoma humano. Ela permitiu grandes avan�os na compreens�o de doen�as como o c�ncer.

Mas as t�cnicas da gen�tica “est�o sendo aplicadas em uma nova frente, um campo onde ela nunca havia sido adotada antes: a psicologia e a sociologia. E est�o surgindo coisas realmente controversas”, diz � BBC News Mundo, servi�o em espanhol da BBC, o geneticista espanhol Manuel P�rez Alonso, professor de gen�tica da Universidade de Val�ncia, na Espanha, e editor da revista Gen�tica M�dica News.

H� uma d�cada, j� � poss�vel calcular nosso risco de contrair certas doen�as a partir de uma amostra de saliva. A novidade � que agora podemos tamb�m conhecer nossa propens�o gen�tica, por exemplo, ao estresse, � ansiedade, ao isolamento ou aos anos de escolaridade.

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A gen�mica social pode beneficiar as pessoas e, no futuro, poder� orientar pol�ticas sociais mais eficazes, segundo os especialistas.

Mas esses mesmos cientistas advertem sobre o risco de mau uso dessas ferramentas, at� com motiva��es racistas.

As “promessas e perigos da gen�mica social e do comportamento” foram o tema de um recente encontro do Instituto Nacional de Pesquisa do Genoma Humano dos Estados Unidos (NHGRI, na sigla em ingl�s).

A BBC News Mundo falou com especialistas em gen�tica sobre as aplica��es da gen�mica social, seus riscos e os avan�os revolucion�rios que levaram ao desenvolvimento deste novo campo da ci�ncia.


Homem preocupado diante de tela de computador

J� � poss�vel conhecer nossa propens�o gen�tica ao estresse ou � ansiedade com uma simples amostra de saliva

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'Explos�o de informa��es'

Dois avan�os paralelos possibilitaram o surgimento da gen�mica social, segundo P�rez Alonso. “De um lado, tivemos um avan�o tecnol�gico muito importante, que foi a redu��o de custos do sequenciamento do DNA para ter acesso �s informa��es gen�micas. A queda dos custos foi espetacular.”

“E, por outro lado, houve tamb�m uma explos�o no desenvolvimento de ferramentas de inform�tica de �ltima gera��o que permitem processar grande quantidade de dados”, afirma o geneticista. “A combina��o destes fatores levou a uma explos�o de informa��es, fazendo com que estudos que antes eram muito complexos agora sejam relativamente simples.”

Essas duas inova��es – o sequenciamento do DNA e a inform�tica – possibilitaram o que se conhece hoje como “estudos de associa��o do genoma completo” (GWAS, na sigla em ingl�s).

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Os GWAS s�o estudos de explora��o global do genoma “nos quais se pode ler cerca de um milh�o de pontos do genoma que apresentam varia��es naturais entre as pessoas. Em gen�tica, chamamos estes pontos vari�veis de polimorfismos”, explica P�rez Alonso.

As novas ferramentas de inform�tica, por sua vez, permitem procurar correla��es entre essas varia��es naturais e uma determinada caracter�stica vis�vel de uma pessoa, o que � conhecido como fen�tipo.

“Em GWAS, estima-se a rela��o entre um fen�tipo e cada uma dentre milh�es de variantes gen�ticas. O fen�tipo poderia ser uma doen�a ou alguma outra caracter�stica, incluindo uma fun��o social ou de comportamento”, explica Daniel Benjamin, professor de economia do comportamento e genoeconomia (o estudo dos v�nculos entre os dados gen�micos e o comportamento) da Universidade da Calif�rnia em Los Angeles, nos Estados Unidos.

Mas como � poss�vel conseguir todas essas informa��es com uma simples amostra de saliva?

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Com base nos estudos GWAS, � calculado um n�mero que expressa o risco de uma pessoa padecer de uma certa doen�a ou ter uma certa caracter�stica social ou psicol�gica. Este n�mero � conhecido como “avalia��o do risco polig�nico” (“polygenic score” ou “polygenic index”, em ingl�s).

Segundo Benjamin, a avalia��o do risco polig�nico “re�ne as rela��es de milh�es de variantes gen�ticas em uma �nica vari�vel resumida” e mede a capacidade de propens�o gen�tica para uma determinada caracter�stica.

O cientista acrescentou que “na �ltima d�cada, passou a ser poss�vel criar �ndices de risco polig�nico porque o GWAS pode ser realizado em estudos de centenas de milhares ou milh�es de pessoas”.


Cientista analisa molécula em laboratório

A queda dos custos de sequenciamento de DNA e o desenvolvimento das ferramentas de inform�tica permitiram a revolu��o da gen�tica

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Testes gen�ticos para o consumidor

Conhecer nosso risco polig�nico custa atualmente menos de US$ 200 (cerca de R$ 1.050). No caso de doen�as f�sicas, as avalia��es polig�nicas s�o usadas para avaliar o risco gen�tico de doen�as como a hipertens�o, diabetes, obesidade e alguns tipos de c�ncer.

A hipertens�o, por exemplo, tem um componente gen�tico, segundo P�rez Alonso. Mas o professor adverte que “n�o h� um gene causador da hipertens�o, nem dois, nem tr�s. Existem centenas de genes que contribuem para o nosso risco de hipertens�o e, por isso, falamos de gen�tica complexa ou gen�tica multifatorial.”

“A empresa pioneira neste campo � a 23andMe. Qualquer pessoa, com uma amostra de saliva, pode ter acesso ao teste e conhecer seu risco polig�nico para uma s�rie de doen�as. Isso j� � uma realidade.”

Da mesma forma, diversas empresas come�aram, nos �ltimos dois anos, a usar testes GWAS e calcular avalia��es de risco polig�nico para caracter�sticas sociais ou psicol�gicas.


“Nos Estados Unidos, existem in�meros exemplos de usos de dados gen�micos sociais e de comportamento pelas empresas”, afirma a professora Daphne Martschenko, do Centro de �tica Biom�dica da Universidade de Stanford, na Calif�rnia (Estados Unidos).


“Os consumidores podem ter acesso f�cil e relativamente econ�mico a testes gen�ticos diretos para o consumidor sobre capacidade matem�tica, n�vel educacional e capacidade cognitiva”, acrescenta ela. “Existem tamb�m empresas de encontros que pretendem utilizar o DNA da pessoa para determinar o perfil mais compat�vel. Falta regulamenta��o nos Estados Unidos.”


A BBC News Mundo explorou tr�s casos concretos de usos, poss�veis benef�cios e riscos da gen�mica social.

Exemplo 1: tend�ncia ao estresse ou ansiedade

O professor P�rez Alonso � s�cio-fundador de uma startup do Parque Cient�fico da Universidade de Val�ncia, chamada Mendel Brain. A empresa desenvolveu um teste gen�tico de 54 caracter�sticas da psicologia humana, segundo explicou Aitor Garc�a, CEO (diretor-executivo) da startup.

 

Segundo Garc�a, “entre essas caracter�sticas, o usu�rio pode conhecer sua sensibilidade ao estresse ou � ansiedade, sua predisposi��o a ser uma pessoa introvertida ou extrovertida e outras caracter�sticas que fazem com que cada um de n�s seja uma pessoa �nica”.

Ele acrescentou que a Mendel Brain baseia-se em mais de 150 artigos cient�ficos que identificaram varia��es gen�ticas associadas � maior predisposi��o de manifestar determinadas caracter�sticas, como, por exemplo, a ansiedade.

Com os estudos GWAS, essas varia��es gen�ticas s�o identificadas e s�o definidos dois grupos de pessoas: as que apresentam uma caracter�stica como a ansiedade e as que n�o apresentam.


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Aplicando m�todos estat�sticos, “s�o identificadas variantes gen�ticas que aparecem no grupo de interesse [com ansiedade] com valor estat�stico significativo e que se encontram em propor��o muito baixa ou nula no grupo sem a caracter�stica”, explica Garc�a.


A empresa compila ent�o essas varia��es gen�ticas para gerar um c�lculo de risco polig�nico e determinar qual � a predisposi��o de uma pessoa com rela��o � m�dia da popula��o.


Garc�a reconhece que saber nossa propens�o ao estresse ou ansiedade traz o risco da “profecia autorrealizadora”, ou seja, que conhecer nossa predisposi��o ao desenvolvimento de uma caracter�stica facilita sua transforma��o em realidade.


Ilustração de homem e variações do DNA

Estudos de associa��o do genoma completo, ou GWAS, leem cerca de um milh�o de pontos do genoma %u2013 as varia��es naturais entre as pessoas das letras A, C, T e G, que representam os componentes b�sicos do DNA

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“� por este motivo que somos met�dicos nas informa��es que inclu�mos nos relat�rios elaborados pelos psic�logos”, segundo ele.

“Estes relat�rios fornecem n�o s� a pontua��o gen�tica, mas tamb�m quanto das caracter�sticas manifestadas � regulado pela gen�tica, indicando a todo momento que tanto a gen�tica quanto o ambiente interv�m no desenvolvimento da caracter�stica e que a pessoa tem capacidade de adaptar-se”, explica ele.

P�rez Alonso acredita que conhecer nossa propens�o ao estresse ou � ansiedade pode ser ben�fico. “H� duas d�cadas, houve um debate similar, quando se pensava que informar a uma pessoa seu risco de sofrer de c�ncer era, de alguma forma, conden�-la a viver no sofrimento. Mas vimos claramente que n�o � assim”, relembra ele.

“Se sou informado que tenho risco maior, por exemplo, de melanoma heredit�rio, vou ser mais cuidadoso na hora de tomar sol e, em caso de qualquer d�vida, vou visitar o dermatologista.”

“Acredito que, no caso da psicologia, ocorre algo similar”, segundo o professor. “Se uma pessoa souber que tem risco mais alto que a m�dia de ter estresse ou ansiedade, ela ir� tomar precau��es especiais para n�o acumular muitas tarefas e lutar contra o estresse de forma mais ativa.”

Exemplo 2: educa��o

Mulher fazendo exame por meio da saliva

Com uma amostra de saliva, podemos conhecer nosso risco gen�tico de doen�as e at� tend�ncias e caracter�sticas psicol�gicas.

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“Um fen�tipo que meus colegas e eu estudamos � o n�mero de anos cursados em educa��o formal”, afirma Daniel Benjamin. O cientista da Universidade da Calif�rnia explica que a gen�tica n�o permite prever sozinha os anos de educa��o formal, j� que existem outros fatores de influ�ncia.

“O �ndice polig�nico para anos de educa��o formal explica cerca de 15% da varia��o entre os indiv�duos. Este n�vel de poder de previs�o � muito baixo para prever com precis�o qual ser� o resultado para cada pessoa.”

“Como compara��o, a previs�o do tempo dos meteorologistas profissionais prev� corretamente cerca de 95% da varia��o das temperaturas di�rias”, afirma ele.


Embora seu poder de previs�o seja baixo, Benjamin destaca que conhecer o �ndice polig�nico para anos de educa��o formal completados � algo valioso para fins de pesquisa.


Identificar a import�ncia do fator gen�tico permite estudar com mais precis�o a influ�ncia de outros fatores, como a situa��o socioecon�mica dos pais ou a assist�ncia pr�-escolar. Mas Benjamin adverte sobre o risco de que “as pessoas possam interpretar mal o �ndice polig�nico e considerar que ele prev� muito mais do que a realidade”.


Por outro lado, em muitos casos, as pessoas que enviam uma amostra de saliva para uma empresa recebem n�o s� os resultados para uma caracter�stica espec�fica, mas seus dados gen�ticos “brutos”, ou seja, todas as informa��es obtidas ao ler o seu genoma.

E, no futuro, qualquer pessoa pode carregar essas informa��es para plataformas online que ofere�am o c�lculo de avalia��es de risco polig�nico.


Para P�rez Alonso, “o principal risco � que uma pessoa sem o assessoramento devido possa acreditar que tudo isso representa sua vida e seu futuro”. “Isso n�o � uma bola de cristal que nos diz o que vai acontecer nos pr�ximos anos. Ela somente nos oferece, no melhor dos casos, certas tend�ncias. A contribui��o gen�tica nunca � 100 por cento.”

Exemplo 3: a amea�a do racismo

Um dos maiores riscos da gen�mica, segundo os especialistas, � que estudos leg�timos sejam mal interpretados ou manipulados maliciosamente com prop�sitos racistas.


“Um dos exemplos mais terr�veis de como a pesquisa gen�mica social e do comportamento est� sendo utilizada como arma � o caso do ‘assassino de Buffalo’”, destaca Daphne Martschenko.

O massacre de Buffalo ocorreu em 14 de maio de 2022. Um indiv�duo branco assassinou, por motivos racistas, 10 pessoas afro-americanas em um supermercado na cidade de Buffalo, no Estado norte-americano de Nova York.

O criminoso transmitiu o ataque ao vivo e publicou um manifesto na internet. No documento, ele se descreveu como supremacista branco e citou, como justificativa do ataque, estudos gen�micos revisados por pares e publicados em revistas cient�ficas de prest�gio.


Esses estudos referem-se, por exemplo, � influ�ncia gen�tica sobre caracter�sticas como a aptid�o cognitiva. Eles n�o falam em diferen�as raciais, mas foram mal interpretados e distorcidos em f�runs racistas.


“O pesquisador Jedidiah Carlson e seus colegas realizaram um excelente trabalho, demonstrando como a direita alternativa [movimento nacionalista branco de extrema-direita] est� invocando materiais extra�dos da pesquisa cient�fica convencional”, destaca Martschenko.


Colação de grau de jovens estudantes

O �ndice de risco polig�nico para anos de educa��o formal explica apenas cerca de 15% da varia��o entre os indiv�duos. O risco � que %u2018as pessoas considerem que ele prev� muito mais do que a realidade%u2019

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As promessas da gen�mica social

Apesar dos poss�veis riscos, os pesquisadores consultados pela BBC News Mundo concordam que a gen�mica social pode fornecer importantes benef�cios.


“O que mais me entusiasma � que a gen�mica social e do comportamento promete melhorar a forma como podemos fazer ci�ncias sociais”, destaca Daniel Benjamin.


Distinguir a influ�ncia gen�tica no caso de anos de educa��o formal completados, por exemplo, pode ajudar a identificar em quais outros fatores as pol�ticas sociais devem se concentrar para que tenham maior impacto, como a assist�ncia pr�-escolar ou merendas gratuitas nas escolas.


A gen�mica tamb�m poderia ajudar a estudar problemas como o isolamento social, segundo P�rez Alonso. Para ele, a gen�mica social e do comportamento “abre o caminho”.


“Ningu�m sabe at� onde se pode chegar porque � algo realmente muito novo, mas o que se come�a a ver � que ela pode ajudar a encontrar respostas a algumas perguntas”, afirma o geneticista espanhol.

Desafio para todos

Com o avan�o da gen�tica, haver� cada vez mais informa��es dispon�veis sobre os v�nculos entre o genoma e as caracter�sticas psicol�gicas ou do comportamento, segundo P�rez Alonso. “Mas, ante essa revolu��o e a avalanche de informa��es e avan�os, acredito que o importante � que os cidad�os tenham mais forma��o em gen�tica.”


Martschenko destaca que “� imensamente importante comunicar ao p�blico as limita��es das avalia��es do risco polig�nico”. “Um exemplo do trabalho sendo realizado para explicar as limita��es dos estudos de gen�mica social e do comportamento � a publica��o pelos pesquisadores de ‘perguntas frequentes’ sobre o alcance dos seus estudos”, acrescenta a pesquisadora da Universidade de Stanford.

Em conjunto com outros colegas, Martschenko reuniu, em um reposit�rio p�blico, os documentos nos quais os pr�prios cientistas explicam, em termos mais acess�veis, como interpretar os seus estudos.


A pesquisadora destaca que tamb�m existem iniciativas nos Estados Unidos para transformar a forma de ensino da biologia, de forma a refletir os avan�os da gen�tica multifatorial.


Para P�rez Alonso, � important�ssimo que os professores de todos os n�veis educacionais recebam atualiza��es sobre o que est� acontecendo na �rea da gen�tica. Ele afirma que “um pa�s n�o pode dar as costas para esses avan�os, que s�o verdadeiras revolu��es”.


“Falo tamb�m das universidades. Um professor que, no melhor dos casos, atualizou seus conhecimentos dez anos atr�s, n�o pode continuar falando apenas da gen�tica como caracter�sticas determinadas por um �nico gene. � triste que isso continue ocorrendo em universidades da Europa.”


“Sim, existem doen�as determinadas por um �nico gene, como a fibrose c�stica. Mas, no caso da psicologia, todas as caracter�sticas s�o polig�nicas.”


“Estamos agora diante de uma gen�tica muito mais complexa, na qual existe uma infinidade de caracter�sticas determinadas ou influenciadas por centenas de genes e o risco polig�nico precisar� ser convertido para todos em linguagem comum e habitual”, conclui o professor.